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A carne de pescado cultivada em laboratório pode ser o caminho para a sustentabilidade

Por: Marcelo Szpilman

Sabores marcantes, valor nutritivo e facilidade de digestão costumam ser boas razões para o consumo de pescado em diversas sociedades ao redor do planeta e, por séculos, comê-los sempre foi um ato natural e saudável.

Entretanto, apesar de a pesca selvagem ser uma das mais antigas atividades desenvolvidas pelo homem, parece que todo esse tempo de prática não foi suficiente para evitar que ela venha sendo empreendida há décadas através de um modelo tradicional exagerado e predatório que já chegou bem próximo do limite sustentável.

Mesmo ocupando três quartos do planeta, os oceanos (e sua biodiversidade) contêm recursos finitos que estão sendo exauridos rapidamente. A pesca industrial e a pesca artesanal já reduziram em torno de 80% da biomassa dos oceanos. Cerca de 90% do pescado selvagem comercial já estão em sua capacidade máxima de exploração. Somando todos os estoques pesqueiros do mundo, 33% estão sendo esgotados mais rápido do que podem ser repostos, 60% estão sendo capturados no nível máximo de reposição e restam apenas 7% no nível sustentável.

Todas essas decorrências, somadas ao aquecimento global e à acidificação dos oceanos, nos levarão um cenário insustentável dentro de poucos anos, com a grave possibilidade de extinção de algumas espécies de peixes selvagens. Mas a demanda por consumo de pescado no mundo continua a crescer 30% ao ano.

E nesse consumo de pescado selvagem, sem falar do ichthyosarcotoxismo (envenenamento por ingestão da carne de alguns peixes), há um alto risco de contaminação por poluentes como mercúrio, químicos de longa duração, contaminantes orgânicos persistentes e até microplástico. Cerca de 80 a 90% do mercúrio acumulado hoje no organismo humano são implicados pelo consumo de pescado selvagem. Essas substâncias nocivas acumulam no organismo humano e podem, no médio/longo prazo, causar doenças crônicas gastrointestinais, teratogênicas e/ou neurológicas irreversíveis.

A aquicultura tradicional, por sua vez, uma alternativa supostamente mais sustentável, continua fortemente dependente da biomassa selvagem capturada para suprir a alimentação de suas criações — mais de 12% dos peixes selvagens capturados no mundo são hoje utilizados na forma de ração ou óleo de peixe (e será de 16% até 2030). Significa dizer que o pescado marinho produzido em criadouros, além de sua dependência não sustentável da pesca selvagem, pode também estar submetido à mesma contaminação por metais pesados e contaminantes orgânicos persistentes, fora outros produtos químicos, como fungicidas e antibióticos largamente usados para controle de doenças provocadas pelo confinamento.

Existe um outro problema conceitual de sustentabilidade com a aquicultura tradicional. A taxa de conversão costuma ser de 4:1 para os peixes marinhos comerciais mais valorizados, essencialmente carnívoros de porte. Isto quer dizer que para produzir 1 quilo de proteína de garoupa são necessários 4 quilos de proteína de sardinha. Ou seja, essa redução de quantidade de proteínas na cadeia produtiva não faz sentido em termos de sustentabilidade, ainda mais sabendo que para seguir alimentando uma população de 10 bilhões de pessoas em 2050, será necessário aumentar a produção de alimentos (e proteínas) em 70%.

Vamos acrescentar mais um problema; a fraude que pode ocorrer quando se vai consumir ou comprar peixe. Quase 30% de todo pescado capturado no mundo são identificados e comercializados de forma enganosa nos principais mercados e peixarias do mundo. Uma investigação nos Estados Unidos, de 2010 a 2015, descobriu que 1/3 de todo pescado testado no país era identificado errado intencionalmente. Ainda nos Estados Unidos, mais de 30% dos restaurantes que pediram filé de peixe e testaram o DNA constataram que não era a espécie que tinham pedido. No Brasil não é muito diferente.

De acordo com o Centro Nacional para Identificação Molecular do Pescado (CENIMP), que faz parte do Instituto de Biologia da UFRJ, 80% de incidência de substituição (fraude) de filé de linguado ocorre em restaurantes, comumente substituído por peixe-panga, 91% do filé de viola vendido nos mercados e peixarias advém de raias ameaçadas de extinção e mais de 20% do bacalhau comercializado no Rio de Janeiro não é bacalhau. Nos restaurantes japoneses, é muito comum comer sashimi de bonito no lugar do anunciado atum e peixe-prego defumado ao invés do haddock que consta no cardápio.

A aquicultura celular

Há em curso uma revolução desse modelo tradicional onde a a carne de pescado cultivada em laboratório pode ser um caminho viável e sustentável para que a sociedade continue consumindo peixes e outros frutos do mar sem a necessidade de pesca e esgotamento dos estoques pesqueiros.

Hoje, no mundo, há oitenta startups (foodtechs) atuando com o propósito de desenvolver e produzir carne (boi, frango ou pescado), ovo e outros produtos por cultivo celular em laboratório. Dessas, quinze trabalham com aquicultura celular de carne de pescado em instalações tecnológicas. E o Brasil possui uma startup representante: a Sustineri Piscis é a primeira foodtech brasileira a obter a bioprodução da carne de pescado por meio do cultivo celular no país.

A aquicultura celular vem sendo proposta pela Sustineri Piscis como uma solução inovadora escalável, uma alternativa ecologicamente correta de consumo mais saudável, mais seguro e mais sustentável ao poupar a natureza e seus recursos marinhos.


E como isso acontece?

A partir de uma pequena amostra de células, utilizando metodologia desenvolvida através do investimento em pesquisa e desenvolvimento, as foodtechs obtêm a reprodução celular da carne de pescado em laboratório e alcançam, em sua primeira fase, o cultivo e escalonamento de linhagens celulares das espécies de peixe desejadas.

No caso da Sustineri Piscis, foram quatro espécies comerciais de pescado marinho de primeira linha e alto valor, sendo duas atualmente classificadas como vulneráveis, segundo a lista vermelha da União Internacional para Conservação da Natureza, como a Garoupa (Epinephelus marginatus) e o Cherne (Hyporthodus niveatus). As outras duas espécies exitosas no processo foram o Robalo (Centropomus parallelus) e o Linguado (Paralichthys brasiliensis). No futuro, será possível ter a carne cultivada de outros peixes nobres também muito valorizados, como atum, salmão, bacalhau e namorado.

O material biológico resultante dessa primeira fase possibilita, então, a produção da carne de pescado de cada espécie em biorreatores. E o mais incrível, longe dos oceanos ou dos tanques de criação, eliminando a exigência por água do mar e sem a necessidade do animal, de sua captura, confinamento, abate e morte. Com a massa proteica produzida no biorreator é possível conceber a produção de peças alimentícias para experimentação. Essa primeira fase já foi atingida por algumas startups estrangeiras de carne de frango e de boi. A Sustineri Piscis prevê que terá seu protótipo (empanado de peixe) para experimentação até o final de 2022 ou início de 2023.

No futuro não muito distante, com mais investimentos em pesquisa, ocorrerá a produção industrial e comercialização de peças alimentícias do tipo embutidos (salsichas) e preparados de carne moldada (empanados, nuggets e hambúrgueres). Na sequência, haverá o desenvolvimento do cultivo e escalonamento em 3D __ formação de estruturas manipuláveis de carne de pescado __ para a produção de filés e sashimis.

E é importante complementar com uma informação muito pertinente: não será comida de laboratório, imitação de carne ou carne com base vegetal, mas sim carne genuína de pescado fresco sem abate e morte do animal. Em vez de pescar ou colher pescado vivo, a aquicultura celular produzirá as mesmas proteínas do pescado fresco cultivando as células desses animais marinhos em instalações tecnológicas situadas no ambiente urbano. E sem a geração de resíduos não comestíveis enfrentado pela pesca e pela aquicultura tradicional, que é o descarte das partes que vão para o lixo, como escamas, pele, olhos, vísceras e vértebras.

O propósito empresarial é produzir localmente e em escala, sem a necessidade ou custo de transporte ou de congelamento, favorecendo a redução da pegada ecológica e tornando o pescado marinho bem mais sustentável e acessível para os consumidores, incluindo os residentes em cidades afastadas do litoral.

Outra grande vantagem desse tipo de produção é obter um pescado livre de espinhas, parasitas, bactérias e metais e pesados e outros poluentes. Também será possível determinar o índice de gordura, acrescentar ômega 3, vitaminas e outros nutrientes ou até mesmo infundir sabores diferentes na carne cultivada.

Com a aquicultura celular, a sociedade poderá ter de fato a alternativa de consumir frutos do mar sustentáveis, saudáveis e com qualidade nutricional igual ou superior ao produto selvagem, com a certeza do que se está comprando e consumindo.

* Marcelo Szpilman é biólogo marinho, idealizador, fundador e presidente de honra do AquaRio e fundador e diretor-presidente (CEO) da Sustineri Piscis.



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